Pesquise

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Carona à garota perdida

 Laura Lucy Dias - audiovisual




Lúcia acordou naquela noite à beira da estrada, estava bastante frio e não sabia para onde deveria se encaminhar, fazia tanto tempo que ela caminhava a ermo, procurando alguém para salvá-la. Estava tudo muito silencioso, era possível distinguir sons de corujas na mata, assim como ouvir claramente seu coração que vinha em um compasso perfeito.

Lúcia resolveu caminhas bem no meio da estrada, seguindo as faixas contínuas que se desenhavam pela frente, escolheu a direita para seguir. A luz era apenas a da lua, lembrava-lhe as estradas interioranas que lhe serviram de caminho nas viagens com seus pais para visitar os avôs, dava para ver a pouca distância à frente e como estava frio, havia uma espécie de neblina que encobria o caminho futuro, o que lhe dava um medo agudo. De repente uma ponta de luz se deu em meio a neblina e foi crescendo de encontro à menina, que parou para esperar. Logo o som do motor do carro e da música que tocava alcançaram seus ouvidos.

O carro preto e cumprido parou e a motorista abriu a janela:

- Achei que fosse uma assombração! O que faz sozinha a esta hora? Quer uma carona?

- Sim, eu quero! Eu estou perdida.

- Sobe aí.

A motorista era uma mulher incomum, muito pálida, mas era uma mulher negra, bonita e muito alta. Tinha o cabelo rebelde e pintado de violeta, tinha piercings, tatuagens e usava roupas prestas com spikes espalhados. O som alto foi amenizado para que pudessem conversar:

- Eu sou Care, Care Onte, e você?

- Meu nome é Lúcia. Obrigada por me dar uma carona.

Care virou o carro de volta à neblina, no sentido em que Lúcia iniciara a sua caminhada naquela noite.

- Como você se perdeu?

- Eu não sei, faz muito tempo que estou perdida, estou tentando voltar para casa.

- Dá para ver essa sua roupa é muito estranha, e está bem sujinha não acha? Vou levar você para um lugar onde possa se lavar e possamos procurar um bom lugar para você, pois há muito é esperada.

Lúcia assentiu com a cabeça, o que podia fazer? Lembrava-se de algumas coisas, mas nem todas, nem mesmo sabia como viera parar aqui sem seus pais, achava que poderia ter sido um acidente de carro, tinha medo de que seus pais estivessem mortos. Durante o caminho as músicas que tocavam naquele carro só arrepiavam Lúcia, Care não era de conversar e por isso não sabia se queria conversar também.

- Sabe, não costumo dar carona assim, eu costumo transportar pessoas, porém, sempre há um preço. Mas você não deve ter nenhuma moeda aí, não é mesmo? – Care riu descontroladamente, parecia muito feliz, mas não parecia uma pessoa normal feliz.

Chegaram à beira de um rio, onde uma ponte ligava a beira do outro lado, muito longe. Lúcia dormiu e não sabia quanto tempo, quando Care a acordou e disse:

- Vem conhecer o meu bichinho de estimação. – E assobiou chamando, como se fosse um cão, mas... não era um cão normal, ele era gigantesco e ele tinha três cabeças. – Não se preocupe Lúcia, ele só morde se você tentar fugir daí de dentro. – Alertou Care enquanto agarrava a garota para levar pelo portão escuro que havia atrás do cão.


O cão de caça

 Lovecraft



Em meu torturado ouvido ressoa incessante um guinchar e farfalhar vindo de um pesadelo, e um uivo débil e distante que parece vir de um cão gigantesco. Não é um sonho - não é, eu temo, sequer loucura - pois muito já me aconteceu para que tal dúvida ainda exista.

St John está todo mutilado; Só eu conheço o porquê, e tanto é meu conhecimento que estou prestes a estourar meus miolos por medo de ser mutilado da mesma maneira. É fundo em escuros e intermináveis corredores de sinistra fantasia que rodeia o meu Nêmese negro e sem forma que me leva à auto-aniquilação.

Que os céus perdoem a tolice e morbidez que nos trouxe a um tão monstruoso destino!

Fatigado das trivialidades de um mundo prosaico; onde até os prazeres do romance e da aventura logo se tornaram banais, St John e eu seguíamos com entusiasmo cada movimento estético e intelectual que prometia um adiamento de nosso tédio devastante. Os enigmas dos simbolistas e os êxtases dos pré-Raphaelitas todos foram nossos em seus tempos, mas cada ânimo novo se drenava cedo demais, de seu apelo e sua inovação distrativa.

Só a sombria filosofia dos decadentes podia nos ajudar, e até isso só nos era efetivo ao aumentarmos gradualmente a profundidade e diabrura de nossas penetrações.

Baudelaire e Huysmans logo estavam logo esgotados de emoção, até que finalmente restou a nós apenas o mais direto estimulo de aventuras e experiências anormais pessoais. Foi essa terrível necessidade emocional que eventualmente nos levou a essa detestável conduta que até mesmo em meu horror presente eu menciono com vergonha e timidez - esse extremo hediondo de atentado à humanidade, a abominável prática de roubar túmulos.

Eu sou incapaz de revelar os detalhes de nossas chocantes expedições, ou de catalogar sequer parcialmente os piores dos troféus que adornam o museu sem nome que preparamos na grande casa de pedra onde coabitávamos, sozinhos e sem servos. Nosso museu era um lugar blasfemo, impensável, onde com o gosto satânico de nossa virtude neurótica construímos um universo de terror e decadência para excitar nossa sensibilidade desgastada. Era uma sala secreta, distante, distante, no subsolo; onde enormes demônios alados esculpidos em basalto e ônix vomitavam de suas largas bocas sorridentes uma estranha luz verde e laranja, e canos pneumáticos ocultos bombeavam danças caleidoscópicas de morte, fileiras de trapos mortuários vermelhos costurados em volumosos penduricalhos pretos. Por esses canos vinha a vontade os odores que nossos humores mais desejavam; as vezes o perfume de pálidos lírios funerários; as vezes o narcótico incenso oriental dos mortos nobres, e por vezes - como me arrepio de lembrar! - o aterrorizante, desalmante fedor do túmulo descoberto.

Por volta das paredes dessa câmara repelente haviam sarcófagos de múmias antigas alternados com vívidos cadáveres formosos, perfeitamente empalhados e cuidados pela arte da taxidermia, e com lápides apanhadas dos mais velhos adros do mundo. Vasos aqui e ali continham crânios de todas as formas, e cabeças preservadas em diversos estágios de dissolução. Ali era possível encontrar as cacholas carecas e apodrecidas de famosos nobres, e as frescas e radiantes cabeças de natimortos.

Também estavam lá estátuas e pinturas, todas de natureza diabólica e algumas feitas por St John e por eu mesmo. Uma pasta trancada, encapada com pele humana curtida, continha desconhecidas e inomináveis gravuras que, segundo rumores, foram feitas por Goya que não ousava reconhecê-las. Haviam ali nauseantes instrumentos musicais, de corda e de sopro, nos quais St John e eu por vezes produzíamos dissonâncias de requintada morbidez e cacodemônico pavor; enquanto numa multitude de gabinetes de ébano repousava a mais incrível e inimaginável variedade de pilhagens vindas de túmulos já reunida pela loucura e perversidade humana. E são desses despojos em particular dos quais eu não devo falar - graças a Deus eu tive a coragem de destruí-los muito antes de considerar destruir a mim mesmo!

As excursões predatórias durante as quais nós coletamos nossos imencionáveis tesouros eram sempre eventos artisticamente memoráveis. Não éramos carniçais vulgares, trabalhávamos apenas sob condições específicas de humor, paisagem, ambiente, clima, estação, e luz da lua. Esse passatempo era para nós a mais única forma de expressão estética, e dávamos aos detalhes os mais meticulosos cuidados técnicos. Um horário impróprio, um efeito de luz dissonante, ou uma manipulação desajeitada da terra úmida, destruiriam quase que totalmente aquela titilação doentia que acompanhava a exumação de qualquer segredo agorento da terra. Nossa busca por cenas singulares e condições picantes era febril e insaciável - St John era sempre o líder, e ele foi quem conduziu o caminho até aquele maldito lugar que nos trouxe nosso horrível e inevitável destino.

Por que maligna fatalidade fomos atraídos até aquele terrível adro holandês? Penso eu que foram os rumores e lendas obscuras, os contos de um homem enterrado por cinco séculos, que havia sido ele mesmo um carniceiro em seu tempo e que havia roubado algo perigoso de uma possante sepultura. Eu posso me lembrar da cena nesses momentos finais - a pálida lua de outono por sobre as lápides, projetando longas e horríveis sombras; as árvores grotescas, se inclinando carrancudas de encontro ao mato negligenciado e as lápides desgastadas; as vastas legiões de estranhamente colossais morcegos que voavam contra a lua; a antiga igreja coberta de heras apontado um enorme dedo espectral para o céu; os insetos fosforescentes que dançavam como fogos-fátuos debaixo dos teixos em um canto distante; os odores de mofo, vegetação, e coisa mais difíceis de se explicar se misturavam debilmente com o vento da noite vindo de distantes pântanos e oceanos; e, o pior de tudo, o fraco uivar grave de algum cão gigantesco que não conseguíamos nem ver nem apontar a origem. Estremecemos quando ouvimos essa sugestão de uivo, nos lembrando das histórias dos camponeses; de que aquele que nós buscávamos havia há séculos sido encontrado nesse mesmo lugar, destroçado e mutilado pelas garras e presas de alguma besta inimaginável.

Eu me lembro de como nós mergulhamos no túmulo do carniceiro com nossas pás, e como nos excitamos com a estética de nós, o túmulo, a lua pálida nos observado, as sombras horríveis, as árvores grotescas, os morcegos titânicos, a igreja arcaica, os vagalumes dançando, os odores nauseantes, o gemido gentil do vento da noite, e o estranho, meio-ouvido uivar sem direção do qual mal tínhamos certeza de que existia.

Foi então que acertamos uma substância mais dura do que o mofo úmido, e nos deparamos com uma podre caixa retangular encrustada de depósitos minerais do terreno que por tanto tempo não foi perturbado. Ele era incrivelmente forte e grosso, mas tão velho que nós finalmente o forçamos a se abrir e nos deleitamos com a visão de seu interior.

Muito - surpreendentemente muito - ainda restava do sujeito apesar do passar de quinhentos anos. O esqueleto, apesar de esmagado em algumas partes pelas mandíbulas da coisa que o havia matado, se manteve inteiro com surpreendente firmeza, e nós nos deliciamos com o crânio limpo e branco e os longos, firmes dentes e os buracos vazios dos olhos que algum dia já brilharam em febre mortuária tais quais os nossos brilhavam naquele momento. No caixão estava posto um amuleto de aparência exótica e curiosa, que aparentemente costumava ser usado em volta do pescoço do falecido. Ele tinha a estranhamente convencional forma de um cão alado agachado, ou uma esfinge com a face semi-canina, e o amuleto era requintadamente esculpido em clássico estilo oriental a partir de uma pequena peça de jade verde. A expressão em suas feições era de extrema repelência, com notas de morte, bestialidade e malevolência. Ao redor da base estava escrito algo em uma linguagem que nem eu nem St John conseguimos identificar; e no fundo, estava gravado um grotesco e formidável crânio, como se fosse a marca de seu criador.

Foi imediatamente após contemplarmos esse amuleto que nós sabíamos que precisávamos possuí-lo; que tão somente aquela relíquia seria nosso tesouro daquele túmulo centenário. Mesmo que sua forma não nos fosse familiar nós a teríamos almejado, mas conforme observamos mais de perto nós vimos que ela não nos era de toda desconhecida. O amuleto era de fato alheio a toda a arte e literatura que leitores sãos e equilibrados conhecem, mas nós o reconhecemos como o artefato mencionado no proibido Necronomicon do Árabe Enlouquecido Abdul Alhazred; o símbolo espiritual pavoroso do culto comedor de corpos da inacessível Leng, na Asia Central. Com todo o cuidado nós traçamos as sinistras origens descritas pelo velho demonologista árabe; origens, ele escreveu, vindas da manifestação obscura sobrenatural das almas daqueles que aborreceram e abocanharam os mortos.

Tomando o objeto de jade verde, tivemos nosso ultimo vislumbre da cor esbranquiçada e do olhar cavernoso de seu dono e fechamos o túmulo como estava quando o encontramos. Enquanto nos apressamos para fora daquele lugar repugnante, o amuleto roubado no bolso de St John, nós pensamos ter visto os morcegos descendo em formação até a terra que nós tão recentemente havíamos vasculhado, como se procurassem por alguma maldita nutrição profana. Mas a lua de outono brilhava fraca e pálida, então não podíamos ter certeza.

Então, novamente, enquanto zarpávamos no dia seguinte para longe da Holanda e de volta para nosso lar, pensamos ter ouvido ao fundo o uivar distante de algum cão gigantesco. Mas o vento do outono gemia triste e abatido, então não podíamos ter certeza.

Pouco menos que uma semana após nosso retorno à Inglaterra, coisas estranhas começaram a acontecer. Nós vivíamos em reclusão; sozinhos, sem amigos, e sem servos em alguns poucos quartos de nosso pequeno casarão em um ermo e afastado brejo; assim nossas portas eram raramente perturbadas pelas batidas de um visitante.

Desde então, no entanto, nós passamos a ser perturbados por o que parecia ser um frequente farfalhar na noite, não só ao redor das portas mas também das janelas, tanto as de cima quanto as de baixo. Em uma ocasião pensamos ter visto um grande e opaco corpo escurecendo a janela da biblioteca enquanto a lua brilhava contra ela, e em outra vez acreditamos ter ouvido guinchos e asas batendo não muito longe. Em cada ocasião nossa investigação não revelava nada, e nós começamos a aceitar as ocorrências como se fossem fruto de nossas imaginações que ainda ecoavam em nossos ouvidos o distante uivar que pensamos ter ouvido no adro holandês. O amuleto de jade então repousava em um nicho no nosso museu, e por vezes nós queimávamos uma estranhamente perfumada vela perante ele. Nós lemos muito no Necronomicon de Alhazred sobre suas propriedades, e sobre a sua relação com os espíritos e os objetos que ele simbolizava; e ficamos perturbados com o lemos.

Então o terror veio.

Na noite de 24 de Setembro, 19--, eu ouvi uma batida na porta de meu aposento. Imaginando que fosse St John, pedi ao batente que entrasse, mas fui respondido apenas por um riso estridente. Não havia ninguém no corredor. Quando eu levantei St John de seu sono, ele declarou total ignorância desse evento, e se preocupou tanto quanto eu mesmo. Foi nessa noite que o distante, inquietante uivar por cima do brejo se tornou uma certa e pavorosa realidade.

Quatro dias depois, enquanto estávamos ambos no museu escondido, por lá começou um silencioso, cuidadoso arranhar na única porta que levava para a escadaria secreta da biblioteca. Nosso terror era agora dividido, sendo que, além de nosso medo do desconhecido, havíamos sempre considerado o temor de que nossa coleção macabra fosse descoberta. Apagando todas as luzes, nós fomos até a porta e a abrimos de supetão; onde então sentimos uma inexplicável corrente de vento, e ouvimos, como se fosse muito ao longe, uma excêntrica combinação de farfalhares, risos abafados, e um tagarelar articulado. Se estávamos loucos, sonhando, ou em sã consciência, não não tentamos determinar. Nós apenas percebemos, com a mais sombria das apreensões, que o tagarelar aparentemente desencarnado era sem sombra de dúvidas na língua holandesa.

Depois disso nós vivemos em crescente horror e fascinação. Nos mantemos sobretudo na teoria de que estávamos juntamente enlouquecendo em consequência de nossa vida de excitações perversas, mas por vezes nos era mais prazeroso dramatizarmo-nos como as vitimas de algum temível terror rastejante. As manifestações bizarras eram agora frequentes demais para se manter a conta. Nossa casa solitária estava aparentemente viva com a presença de algum ser maligno cuja natureza não podíamos adivinhar, e por todas as noites aquele uivar demoníaco rolava junto ao vento do brejo, sempre mais e mais alto. Em 29 de Outubro nós encontramos, na terra macia debaixo da janela da biblioteca, uma série de pegadas absolutamente impossíveis de se descrever. Elas eram tão desconcertantes quanto as hordas de grandes morcegos que assombravam o velho casarão em números crescentes nunca antes vistos.

O horror alcançou o cúmulo em 18 de Novembro, quando St John, que andava para casa depois do anoitecer vindo da sombria estação ferroviária, foi abordado por alguma coisa carnívora terrível que o rasgou em fatias. Seus gritos chegaram até a casa, e eu corri até a terrível cena a tempo de ouvir o zunido de asas e de ver uma vaga sombra nebulosa em silhueta contra a lua que se erguia.

Meu amigo estava morrendo quando falei com ele, e ele não podia me responder com coerência. Tudo que ele podia fazer era sussurrar, “O amuleto - aquela coisa maldita -”

E então ele desabou, uma massa inerte de carne mutilada.

Eu o enterrei na madrugada seguinte em um de nossos jardins negligenciados, e murmurei por cima de seu corpo um dos rituais demoníacos que ele amara em vida. E conforme eu pronunciava a última sentença demoníaca eu ouvi ao longe no brejo o distante uivar de algum cão gigantesco. A lua estava em pino, mas eu não ousei olhar para lá. E quando eu vi no brejo pouco iluminado uma larga sombra nebulosa deslizando de uma colina para a outra, eu fechei meus olhos e me joguei com o rosto contra o chão. Quando eu me ergui, trêmulo, não sei quanto tempo depois, eu cambaleei para dentro de casa e fiz chocantes reverências perante o amuleto consagrado de jade verde.

Agora com medo de viver sozinho na antiga casa no brejo, eu parti no dia seguinte para Londres, levando comigo o amuleto depois de destruir com fogo e enterros o resto da coleção impia do museu. Mas depois de três noites eu já ouvia o uivar novamente, e antes de se passar uma semana sentia estranhos olhares sobre mim sempre que estava no escuro. Em um fim de tarde enquanto eu caminhava pelo Victoria Ebankment para tomar um muito necessário ar fresco, eu vi uma forma negra obscurecer o reflexo na água de uma das lâmpadas. Um vento, mais forte que o vento da noite, lançou-se por cima de mim, e eu soube então que o que quer que tenha pego St John logo pegaria a mim.

No dia seguinte eu cuidadosamente empacotei o amuleto de jade verde e naveguei de volta para a Holanda. Que piedade me seria dada por devolver essa coisa para seu silencioso dono adormecido eu sequer imaginava; mas eu sentia que precisava tentar tomar qualquer atitude concebivelmente lógica. O que o cão era, e por que ele me perseguira até então, ainda eram questões vagas; mas eu ouvi o uivar pela primeira vez naquele adro antigo, e todos os eventos subsequentes incluindo o sussurro de morte de St John serviram para conectar a maldição com o nosso roubo do amuleto. Por isso eu afundei nos mais profundos abismos do desespero quando, em uma estalagem em Rotterdam, eu descobri que ladrões haviam me despojado desse meu único meio de salvação.

O uivar estava alto naquela noite, e pela manhã eu li sobre um feito anônimo no quarteirão mais vil da cidade. A ralé estava em pânico, pois naquela criminosa habitação coletiva fora feita uma matança que ultrapassara os limites de qualquer outro crime cometido na vizinhança. Naquele ninho esquálido de ladrões uma família inteira havia sido rasgada e mutilada por uma coisa desconhecida que não deixou nenhum traço, e aqueles por perto ouviram por toda a noite um distante, profundo e insistente uivar como o de um cão gigante.

Foi então enfim que me pus de pé novamente no insalubre adro em que uma pálida lua de inverno projetava sombras medonhas e árvores sem folhas se curvavam carrancudas de encontro a grama murcha, geada e às lapides trincadas, e a igreja coberta de vinhas apontava um irrisório dedo para um céu nada amigável, e o vento da noite rugia maníaco vindo de pântanos congelados e mares frígidos. O uivar estava então muito distante, e cessou completamente enquanto eu me aproximava do túmulo que por uma vez já havia violado, e fui assustado por uma enorme horda anormal de morcegos que pairavam estranhamente ao meu redor.

Eu não sei por que fui até lá vindo de tão longe senão para rezar, ou balbuciar súplicas insanas e pedir desculpas para a calma coisa branca que lá dentro repousava; mas, qualquer que fosse minha motivação, eu ataquei a terra meio congelada com um desespero parte meu e parte vindo de uma força dominante além de eu mesmo. A escavação foi muito mais fácil do que eu esperava, mesmo que em um ponto eu tenha encontrado uma interrupção bizarra; quando um abutre magro se arremessou do céu frio e se pôs a bicar freneticamente a terra do túmulo até que eu o matei com um golpe de minha pá. Eu finalmente alcancei a caixa retangular apodrecida e removi a tampa úmida. Esse foi o último ato racional que eu realizei em minha vida.

Pois enfiado naquele caixão centenário, coberto por uma série de morcegos enormes e sinuosos que dormiam, estava a coisa ossuda que meu amigo e eu havíamos assaltado; não limpo e plácido como nós tínhamos o visto antes, mas coberto de sangue pisado e farrapos alheios de carne e cabelo, e ele me encarava com malícia e consciência com os buracos dos olhos fosforescentes e presas pontiagudas e ensanguentadas que bocejavam zombeteiras do meu destino inevitável. E foi quando aquilo uivou de sua mandíbula sorridente um uivar profundo e desdenhoso como o de um cão gigantesco, e eu vi que ele segurava em suas garras sangrentas e imundas o perdido e fatídico amuleto de jade verde, que eu apenas berrei e corri para longe como um idiota, meus gritos logo se dissolvendo em repiques de riso histérico.

A loucura corre pelo vento das estrelas… garras e presas afiadas em séculos de corpos… gotejando morte montado numa legião de morcegos vinda das ruínas preto-noite dos templos enterrados de Belial… Agora, enquanto o uivar daquela monstruosidade morta e sem carne se torna mais e mais alto, e o farfalhar e guinchar dos malditos diabos alados se torna mais e mais próximo, eu devo buscar com meu revolver o esquecimento que é meu único refúgio do que não tem nome e que não deve ser nomeado.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A máscara da Morte Rubra

Edgar Allan Poe - AUDIOVISUAL

OUÇA O TEXTO AQUI

Por muito tempo a “Morte Rubra” devastara o país. Jamais pestilência alguma fora tão mortífera ou tão
terrível. O sangue era seu avatar e seu sinal — a vermelhidão e o horror do sangue. Surgia com dores agudas, súbitas vertigens; depois, vinha profusa sangueira pelos poros e a decomposição. As manchas vermelhas no corpo, em particular no rosto da vítima, estigmatizavam-na, isolando-a da compaixão e da solidariedade de seus semelhantes. A irrupção, o progresso e o desenlace da moléstia eram coisa de apenas meia hora.

Mas o príncipe Próspero sabia-se feliz, intrépido e sagaz. Quando seus domínios começaram a despovoar-se, chamou à sua presença um milheiro de amigos sadios e frívolos, escolhidos entre os fidalgos e damas da corte, e com eles se encerrou numa de suas abadias fortificadas. Era um edifício vasto e magnífico, criação do gosto excêntrico, posto que majestoso, do próprio príncipe. Forte e alta muralha, com portões de ferro, cercava-o por todos os lados. Uma vez lá dentro, os cortesãos, com auxílio de forjas e pesados martelos, rebitaram os ferrolhos, a fim de cortar todos os meios de ingresso ao desespero dos de fora, e de escape, ao frenesi dos de dentro. A abadia estava amplamente abastecida. Com tais precauções, podiam os cortesãos desafiar o contágio. O mundo externo que se arranjasse. Por enquanto, era loucura pensar nele ou afligir-se por sua causa. O príncipe tomara todas as providências para garantir o divertimento dos hóspedes. Contratara bufões, improvisadores, bailarinos, músicos. Beleza, vinho e segurança estavam dentro da abadia. Além de seus muros, campeava a “Morte Rubra”.

Ao fim do quinto ou sexto mês de reclusão, quando mais furiosamente lavrava a pestilência lá fora, o príncipe Próspero decidiu entreter seus amigos com um baile de máscaras de inédita magnificência.


Que cena voluptuosa, essa mascarada! Mas me permitam, primeiramente, falar das salas em que se realizou. Era uma série imperial de sete salões. Na maioria dos palácios, tais séries formam longas perspectivas em linha reta, as portas abrindo-se de par em par, possibilitando a visão de todo o conjunto. Aqui, o caso era diverso, como se devia esperar do gosto bizarro do duque. Os apartamentos estavam dispostos de forma tão irregular que a vista abarcava pouco mais de um por vez. A cada vinte ou trinta metros, havia um cotovelo brusco, proporcionando novas perspectivas. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica abria-se para o corredor fechado que acompanhava as sinuosidades do conjunto. Essas janelas estavam providas de vitrais cuja cor variava de acordo com o tom predominante da decoração da sala para a qual davam. A sala da extremidade oriental, por exemplo, fora decorada em azul, e intensamente azuis eram suas janelas. A segunda sala tinha ornamento e tapeçarias purpúreas; purpúreas eram as vidraças. A terceira fora pintada de verde, sendo também verdes as armações das janelas. A quarta havia sido decorada e iluminada de alaranjado; a quinta, de branco; a sexta, de violeta. O sétimo aposento estava completamente revestido de veludo preto, que, pendendo do teto e ao longo das paredes, caía em dobras pesadas sobre um tapete de mesmo estofo e cor. Nesse aposento, entretanto, a cor das janelas não correspondia à das decorações. Suas vidraças eram vermelhas, de uma escura tonalidade sanguínea. Cumpre notar que em nenhum dos aposentos havia lâmpada ou candelabro pendendo do teto ricamente ornamentado a ouro. Luz alguma emanava de lâmpada ou candelabro em qualquer das salas. Contudo, nos corredores que as acompanhavam, em frente de cada janela, havia um pesado trípode a sustentar um braseiro cuja luz, filtrando-se através dos vitrais, iluminava o aposento, ocasionando uma infinidade de vistosas e fantásticas aparências. Na sala negra, porém, o clarão, infletindo sobre as negras cortinas através dos vitrais sanguíneos, produzia um efeito extremamente lívido e dava aparência tão estranha à fisionomia dos que ali entrassem que poucos tinham coragem de atravessar-lhe o umbral.

Era nesse mesmo aposento que havia, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo ia e vinha num tique-taque lento, pesado, monótono. Quando o ponteiro dos minutos completava a volta do mostrador e a hora estava para soar, saía dos brônzeos pulmões do relógio um som limpo, alto, agudo, extremamente musical, mas de ênfase e timbre tão peculiares que, a cada intervalo de hora, os músicos da orquestra viam-se constrangidos a interromper momentaneamente a execução para ouvi-lo. Nesses momentos, era forçoso que os dançarinos parassem de dançar, e um breve desconcerto se apoderava da alegre companhia. Enquanto vibrava o carrilhão do relógio, os mais afoitos empalideciam, e os mais idosos e sensatos passavam a mão pela fronte, como em sonho ou meditação confusa. Tão logo se esvaíam os ecos, um riso ligeiro percorria a assembleia. Os músicos se entreolhavam, sorrindo da própria nervosidade e loucura, fazendo juras sussurradas, uns aos outros, de que o próximo carrilhonar do relógio não mais produziria neles tal comoção. Todavia, sessenta minutos mais tarde (que abrangem três mil e seiscentos segundos do tempo que voa), quando vinha outro carrilhonar do relógio, de novo se dava o mesmo desconcerto, o mesmo tremor, a mesma meditação de antes.

A despeito de tudo isso, a folia ia alegre e magnífica. Os gostos do duque eram originais. Tinha ele olho esperto para cores e efeitos. Desprezava as maneiras da moda em vigor. Seus projetos eram audazes e vivos; suas concepções esplendiam de um lustro bárbaro. Muitos acreditariam tratar-se de um louco. Seus adeptos, porém, sabiam que não. Era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para assegurar-se de seu juízo perfeito.

Em grande parte, ele comandara pessoalmente a caprichosa decoração das salas para a grande fête; sob sua orientação, haviam sido escolhidas as fantasias. Sem dúvida, elas eram grotescas. Havia muito brilho, muita pompa, muita coisa fantástica, muito daquilo que, desde então, pode-se ver em Hernani. Havia figuras arabescas, com membros e adornos desproporcionados. Havia fantasias delirantes, invenções de louco. Havia muito de belo, de atrevido, de bizarro, algo de terrível, capaz em não pouca medida de provocar aversão. Para lá e para cá, nas sete salas, movimentava-se uma multidão de sonhos. E esses sonhos andavam de um canto a outro, impregnando-se do colorido das salas, fazendo a música extravagante da orquestra soar como o eco de seus passos. Mas logo cantava o relógio de ébano na sala aveludada; por um momento, tudo se fazia imobilidade e silêncio, perturbado apenas por aquela voz. Os sonhos paravam, retesados. Porém, quando os ecos do carrilhão se esvaíam — tinham durado apenas um instante —, um frouxo de riso os acompanhava. E, mais uma vez, a música era reiniciada, os sonhos tornavam a viver e a circular mais alegremente que nunca, banhados pelas cores que a luz dos trípodes, atravessando os vitrais, projetava sobre eles. Entretanto, à última das sete salas, ninguém se aventurava, porque, avançando a noite, a luz filtrada pelas rubras vidraças fazia-se mais sanguínea; e a negrura dos panejamentos causava medo. Aqueles cujos pés pisassem o tapete veludoso ouviriam o som abafado do relógio, e o ouviriam mais solenemente enfático que os convivas dos demais salões.

Esses outros salões estavam cheios de gente; neles, pulsava febril o coração da vida. E a folia continuou, rodopiante, até que o relógio começou a bater meia-noite. A música parou, como já descrevi; acalmou-se o rodopio dos dançarinos; e, como antes, uma constrangida imobilidade tomou conta de todas as coisas. Doze foram as badaladas; por isso, os que meditavam entre os foliões tiveram tempo de meditar mais longa e profundamente. E antes que se esvanecesse o eco da última badalada, muitos dos convivas puderam perceber a presença de um novo mascarado, que, até então, não atraíra as atenções. Entre murmúrios, propagou-se a notícia da nova presença; elevou-se da companhia um zum-zum, um rumor de desaprovação e surpresa, a princípio; de terror, de horror e de náusea, depois.

Numa assembleia de fantasmas, como a que descrevi, era de supor que tal agitação não seria causada por aparição vulgar. Na realidade, a licença carnavalesca da noite fora praticamente ilimitada, mas o novo mascarado excedia em extravagância ao próprio Herodes; ultrapassava, inclusive, os indecisos limites de decoro impostos pelo príncipe. Há fibras no coração dos mais levianos que não podem ser tocadas impunemente. Mesmo para os pervertidos, para quem vida e morte são brinquedos igualmente frívolos, há assuntos sobre os quais não se admitem brincadeiras. Todos os presentes pareciam se dar conta de que, nos trajes e nas atitudes do estranho, nada havia de espirituoso ou de conveniente. Alto e lívido, vestia uma mortalha que o cobria da cabeça aos pés. A máscara que lhe escondia as feições imitava com tanta perfeição a rigidez facial de um cadáver que nem mesmo a um exame atento se perceberia o engano. E, no entanto, tudo isso seria, se não aprovado, ao menos tolerado pelos presentes, não fora a audácia do mascarado em disfarçar-se de Morte Rubra. Suas vestes estavam salpicadas de sangue; sua ampla fronte, assim como toda a face, fora borrifada com horrendas manchas escarlates.

Quando os olhos do príncipe Próspero caíram sobre aquela figura espectral (que, para melhor representar seu papel, caminhava entre os dançarinos com passos lentos e solenes), viram-no ser tomado de convulsões e arrepios de terror ou asco, no primeiro instante; logo depois, porém, seu rosto congestionou-se de raiva.

— Quem se atreve — perguntou roucamente aos cortesãos que o cercavam —, quem se atreve a insultar-nos com essa brincadeira blasfema? Agarrem-no, desmascarem-no! Assim saberemos quem deverá ser enforcado ao amanhecer!


Essas palavras vieram da sala azul, onde se achava o príncipe quando as pronunciou. Ecoavam pelas sete salas, alta e claramente, porque o príncipe era homem destemido e forte, e a música havia cessado, a um gesto seu.

Vieram da sala azul, onde estava o príncipe, rodeado de cortesãos empalidecidos. No primeiro momento que se seguiu à fala do príncipe, houve um ligeiro movimento de avanço do grupo em direção ao intruso. Este se achava perto e, com passos deliberados e firmes, aproximou-se do anfitrião. Mas, devido ao indefinível terror produzido pelo mascarado no ânimo de todos, ninguém se atreveu a agarrá-lo. Sem empecilho, ele se afastou, passando a um metro do lugar onde estava o príncipe. À sua passagem, toda a vasta assembleia, como que movida pelo mesmo impulso, afastou-se do centro das salas para as paredes, e o mascarado pôde seguir seu caminho com desembaraço, e com os mesmos passos solenes e medidos com que passara da sala azul à vermelha, da vermelha à verde, da verde à alaranjada, desta para a branca, e para a violeta, sem que nenhum dos circunstantes tivesse esboçado um gesto para detê-lo. Foi quando, louco de raiva e vergonha da própria e momentânea covardia, o príncipe Próspero cruzou apressadamente as seis salas, sem ninguém a segui-lo: o terror se apoderara de todos. Brandindo o punhal, avançava impetuosa e rapidamente; já estava a três ou quatro passos do vulto que se retirava, quando este, atingindo a extremidade da sala aveludada, virou-se bruscamente e enfrentou seu perseguidor. Nesse instante ouviu-se um grito agudo, e o punhal caiu cintilante no tapete negro, sobre o qual tombou também, instantaneamente e ferido de morte, o príncipe Próspero. Recorrendo à selvática coragem do desespero, um grupo de foliões correu para a sala negra e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, detiveram-se eles, horrorizados, ao descobrir que a mortalha e a máscara mortuária que tão rudemente haviam agarrado não continham nenhuma forma tangível.

Só então se reconheceu a presença da Morte Rubra. Viera como um ladrão na noite. E, um a um, caíram os foliões nos ensanguentados salões da orgia, e morreram, conservando a mesma desesperada postura da queda. E a vida do relógio de ébano extinguiu-se simultaneamente com a do último dos foliões. E as chamas dos trípodes apagaram-se. E a Escuridão, a Ruína e a Morte Rubra estenderam seu domínio ilimitado sobre tudo.


– Edgar Allan Poe [tradução de José Paulo Paes]. no livro “A causa secreta: e outros contos de horror”. (Vários autores). São Paulo: Boa Companhia, 2013.