Por Laura Lucy Dias
Classificação: 14 Anos |
Para começar quero dizer que é um ótimo filme,
trazendo os questionamentos do extremismo com seu final fantástico, que mostra
que o que mais vale é o equilíbrio e o respeito.
Porém, precisamos falar sobre Leslie, a
morta. Eu leio o filme como uma denúncia grave sobre as condições da mulher na
sociedade, e tão grave que mostra que a mulher é invisível.
Não negarei spoilers, e por isso começo
a falar da introdução do filme, que se dá a nos fazer simpatizar com a família
que vive na floresta, de forma quase militar. Ligados a ideias de esquerda, e confesso
que fiquei encantada com o ensino das crianças baseado na verdade, leitura e
reflexão. O protagonismo e a independência eram claras como foco da educação do
grupo.
E eu via aquilo tudo e me perguntava o
tempo todo: "Onde está a mulher?"
Tudo começa com o Bo caçando um alce,
para o seu ritual de passagem, no qual o pai o define como homem. Guardem esse
momento, pois ele é importante para a revelação do papel da mulher na sociedade.
Ela nem nos foi apresentada. Na
manhã seguinte, quando Ben vai com o seu filho mais velho Bo, à cidade mais
próxima, os outros filhos cobram uma posição sobre o retorno da mãe, que estava
longe há três meses e duas semanas, segundo diz uma de suas filhas.
Ao ligar para a casa na qual a mulher
deveria estar, a irmã dela informa que na noite anterior, Leslie se suicidou,
cortando os pulsos. Então nós descobrimos que na verdade o filme é contado do
ponto de vista do Ben. Isso é muito importante também, já que por isso sabemos
muito pouco do que é Leslie.
A família de um homem e mais seis filhos
não é aceita no funeral devido às mágoas do pai de Leslie, que não deseja o
homem lá, já que ele culpa Ben pelo estado da filha, que estava em sua casa
para tratamento. E, segundo Ben, Leslie tinha deficiência em seus
neurotransmissores, que não levavam para o cérebro a serotonina. Depois
descobrimos que ela tinha transtorno bipolar. Ainda mais adiante descobrimos,
pela narrativa de Ben, que ela tinha desenvolvido esse transtorno depois de ter
o Bo, provavelmente resultante de uma depressão pós-parto.
Em continuidade da história da família
antes do suicídio de Leslie, descobrimos que eles resolveram sair do sistema
social vigente quando Bo tinha entre 3 e 4 anos, no entanto apenas se
estabeleceram na floresta, quando ele tinha oito anos.
Vivendo de forma isolada, educando os
filhos em casa, com um olhar estrangeiro e superior para a sociedade que eles
menosprezavam, desdenhando práticas religiosas, capitalistas, industriais,
dentre outras. Esse desdém vem ilustrado quando no banco uma das crianças mais
jovens questiona sobre o peso das demais pessoas, gordas, que estão no
ambiente. Eles começam a caçoar e são repreendidos por eles mesmos, e arrematam
dizendo que só caçoam dos católicos.
Eles resolvem ir ao funeral, mesmo com o
risco de Ben perder a guarda dos filhos, sob a ameaça de que a polícia seria
chamada. Antes disso ele sonha com Leslie, a mulher do sonho está feliz e
denota concordar com tudo o que há em torno deles, uma clara postura do olhar
de Ben sobre a esposa dele, a primeira aparição é uma idealização do homem
sobre a mulher, e uma idealização dela em relação a ele mesmo, pois o ponto de
partida dele para o mundo dele e suas convicções incluem a Leslie que o apoiava.
Ela será enterrada, mesmo contra o seu
desejo, pelo pai. Há a única voz da mulher pelo testamento dela, Ben e seus
filhos decidem conceder o desejo da mulher morta, cremá-la e jogar as cinzas em
uma privada pública, depois de dançarem e cantarem em seu enterro. Esse é o
único momento em que todos da família dela, sem contar os pais, a ouvem. Ela
viveu muitos anos sofrendo desde momentos de euforia extrema até à desolação
catatônica, e aqui eu vejo uma relação com o Anticristo - filme de Lars Von
Trier -, quando o marido diz que achou que conseguiria ajudar sua esposa sem o
tratamento convencional e os medicamentos. A relação é a mesma que há quando o
marido decide cuidar da esposa doente pela perda do filho, assim como Leslie
perde o filho quando ele vira homem. A mudança para essa vida extrema era uma
maneira de ajudar a mulher se curar, segundo ele.
Ela não era ouvida e passou a agir de
forma subversiva, principalmente com o filho Bo, apoiando-o a fazer provas de
aptidão para as faculdades mais renomadas dos EUA, sem que Ben, o pai,
participasse ou entendesse, o que segundo ele era uma situação inferior, já que
ele entendia que ninguém conseguiria ensinar mais nada ao filho, melhor formado
pelos pais que por qualquer instituição Estatal ou privada.
Essa mulher que é mãe e suicida, tem uma
morte de virgem, com os braços cortados, o sangue que vem é como o sangue da
pureza e do sacrifício, ela morre como a mais pura mulher, antes mesmo de ser a
mulher, já que o problema dela é ser mulher, e estar diante de uma sociedade
extrema em que em nenhum momento a deixou ser, permanecer ou viver em paz.
Seu pai a oprimiu com o extremo
capitalismo, seu esposo a oprimiu com a extrema ideologia de esquerda e ela não
pode ter o que mais queria, que era um meio termo. Antes de se suicidar ela já
estava morta e a sua morte vem no momento em que ela deixa de ser mãe, visto
que se mata no dia em que o filho mais velho, aquele com o qual ela teve a
primeira relação materna, vem a tornar-se homem. Esse rompimento mostra que ela
suportou o máximo que pode, porém, não mais que isso, quiçá que ela estava
presa como mulher ao papel materno.
Toda a saga se dá quando a família
decide ir ao funeral e cremar a mãe. E mesmo assim não foi dada a devida voz à
mulher. Depois de ser enterrada, contra a sua vontade, o filho do meio, o mais
agressivo, com uma atuação estupenda no momento da notícia da morte da mãe,
acaba decidindo ficar com o avô, pois ele sabia que o pai não tinha dado à mãe
ouvidos, filho tãl que não se adequava ao sistema adotado pela família e que
não sabia expressar-se sobre o que estava errado, mas percebia que algo estava
fora dos eixos em relação a mãe. Esse garoto acaba revelando ao pai o quanto
ele estava sendo extremista e o enfrenta, como há de ser contra qualquer
ditadura.
Ao tentar "sequestrar" o
filho, uma das meninas acaba por cair e se ferir, e Ben decide deixar as
crianças com o avô, pois ele nunca foi capaz de cuidar bem dos filhos, segundo
as perspectivas gerais e a sua própria no momento atual, e a mulher não
desejava que eles continuassem a viver de forma extrema, mais uma vez negando o
desejo da mulher.
Quando Ben cede, ele ouve a mulher e aí
ela pode contracenar, mesmo que apenas como um corpo morto em um caixão, uma
cena linda e revoltante, do ponto de vista dos sacrifícios que uma mulher deve
fazer para ser ouvida. A sua cremação é o ritual de passagem daquela família
para uma nova etapa de relação social com as outras pessoas e o mundo a sua
volta.
Ao invés de ingressar em uma faculdade
filho mais velho resolve viajar, deixando de lado os planos dos pais, remetendo
ao verdadeiro impacto do ritual de passagem, pois ele como homem se desvincula
da família e se torna um indivíduo descaracterizado do que foi formado e passa
a incorporar aquela formação em si, como um indivíduo esférico e não mais
plano. Ele passa a ter identidade própria e não a ser um pedaço do pai ou da
mãe que se propaga pela Terra, o que em geral é uma aberração.
Ela aparece no filme 3 vezes, duas em
sonho com o marido e o corpo dela sendo levado do cemitério, representada por
fotos do seu casamento, durante o restante do filme é apenas uma sombra e que
jaz sendo honrada, desonrada, desejada, idealizada, repudiada, exposta,
ignorada... tudo, menos ouvida.
Acredito que a crítica à condição
feminina está aí, mesmo que não seja clara, dentro dessa mudez reservada à
mulher dentro de qualquer sistema, seja ele capitalista ou comunista, visto que
ambos são patriarcais.
Acho que agora só nos resta a comemorar o aniversário de Chomsky.
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