Vitória Ivanize |
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sexta-feira, 29 de junho de 2018
quinta-feira, 28 de junho de 2018
quarta-feira, 27 de junho de 2018
Sentimento do Mundo, Carlos Drummond de Andrade
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
sábado, 23 de junho de 2018
As Vantagens de Ser Invisível
Gisele Silva
O livro As Vantagens de Ser Invisível, de Stephen Chbosky, que é um autor estadunidense, que, além de escritor é cineasta, é um livro incrível que fala sobre muitas questões que passamos no correr da adolescência, medos, desilusões, encontros, desencontros, alegrias, tristezas...
Num primeiro momento ele pode parecer ser meio bobo, mas é de uma profundidade imensa, ele é escrito em cartas, onde o narrador Charlie, conta sua vida durante um ano para uma pessoa que ele não conhece e provavelmente nunca vá conhecer. Charlie passou por momentos delicados em sua vida, um garoto fechado, sem amigos e seu único amigo comete suicídio e ele nunca descobre a causa, já que seu amigo se foi sem nunca deixar margem do que possa ter lhe causado tanta dor.
Ao iniciar o Ensino Médio, Charlie encontra um casal de irmãos (Patrick e Sam) e logo vira amigo deles, passando a viver histórias encantadoras e a finalmente começar a fazer parte de um grupo, Charlie se apaixona por Sam, a irmã, mas acaba namorando outra garota do grupo e por conta disso acaba armando problemas que ele não consegue resolver prontamente, assim como todos nós já passamos ou vamos passar por esse tipo de situação. Ele volta a se isolar, voltando a amizade com os amigos com o passar do tempo, ao defender seu amigo de problemas com relação a preconceito. Além da temática morte, temos também a questão do homossexualismo, já que Patrick é gay e tem um caso com outro garoto que tem namorada e é popular, além de ser daqueles machões jogadores de futebol americano. Patrick vai a diversos lugares onde se pode encontrar um par, podemos perceber que a sociedade, tanto a estadunidense quanto a nossa, ainda é muito preconceituosa com relação a esse assunto. E talvez uma das temáticas mais dramáticas e complicadas da trama se encontra na questão do abuso sexual tanto em mulheres quanto a pedofilia, isso é falado suavemente no livro, devido ao fato de serem cartas, Charlie tenta ser o mais fiel e com o cuidado de não ofender seu leitor e, ao ler, ficamos estarrecidos com o fato e como a mente humana pode esconder determinadas coisas que passamos durante a infância, trazendo a tona com apenas um gesto.
O que mais impressiona na leitura são os livros que Charlie lê durante o romance e as músicas que escuta. Seu professor de Inglês vê seu potencial e lhe dá livros maravilhosos para que ele leia e faça trabalhos em cima desses livros, leituras que são magníficas para se aprender mais sobre a vida e superar anos que podem ser os melhores, mas também o mais carregados que possamos ter. Não são livros de autoajuda, como temos visto nas livrarias e sim clássicos da literatura universal, como O Apanhador no Campo de Centeio, Hamlet e On The Road. As músicas que ele escuta e costuma gravar em fitas K7 - sim em fitas k7 -, são lindas, sua banda predileta é The Smiths, com suas letras tristes, mas que falam exatamente o que estamos sentindo em determinados momentos.
Por fim, Charlie, depois de uma grande crise decide viver, decide conhecer outros mundos e outras pessoas, fazer sua vida valer a pena e superar seus medos e fracassos, como todos nós acabamos fazendo em algum momento de nossas vidas.
Um livro encantador e profundo que pode ajudar a nos entender e a entender o mundo, fazer pensar e agir sobre ele de forma mais consciente e de forma leve. Leia com carinho e poderá se beneficiar muito, seja adulto ou adolescente.
18/2/2013
Beatriz Yasmin se apresenta
Venho me apresentar como nova autora no blogue e na página da Cultreco, Sou Beatriz Yasmim, tenho 12 anos e faço parte do Clã dos Cabeças, grupo do projeto de desenho da professora Laura. Eu sempre desenhei, escolhia desenhos como os personagens de A hora de aventura ou algum Kawaii fofo, e isso me deixa mais calma e em paz. Se seguirei alguma profissão na área ainda é muito cedo para pensar, porém, eu não quero parar de desenhar.
sexta-feira, 22 de junho de 2018
Venha ver o pôr do sol, Lygia Fagundes Telles
Lygia Fagundes Telles
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam
rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios.
No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas
crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na
quietude da tarde.
Ele
a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão
azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de
estudante.
–
Minha querida Raquel.
Ela
encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
–
Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que
idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele
chegaria aqui em cima.
Ele
sorriu entre malicioso e ingênuo.
–
Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece
nessa elegância…Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas,
lembra?
–
Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela,
guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hem?!
–
Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço rindo.
–
Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e
dourado…Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse
perfume. Então fiz mal?
–
Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí?
Um cemitério?
Ele
voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro,
carcomido pela ferrugem.
–
Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os
fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou,
lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente.
Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. – Ricardo e suas idéias. E
agora? Qual é o programa?
Brandamente
ele a tomou pela cintura.
–
Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante
e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Perplexa,
ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
–
Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…Fabuloso, fabuloso!…Me implora um último
encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira,
só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério…
Ele
riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
–
Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de
te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse
possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive
espiando pelo buraco da fechadura…
–
E você acha que eu iria?
–
Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se
pudéssemos conversar um instante numa rua afastada…- disse ele, aproximando-se
mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos,
inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente
apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era
nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas
desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio
desatento –Você fez bem em vir.
–
Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
–
Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
–
Mas eu pago.
–
Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de
graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda
comigo? Até romântico.
Ela
olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
–
Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive
meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas
fabulosas idéias vai me consertar a vida.
–
Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque,
meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja,
completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos
gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
–
É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se
vem um enterro? Não suporto enterros.
–
Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma
coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos
sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo…
O
mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso
pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões
dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse
com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da
morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos
de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas
trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir
como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra
sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
–
É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é
deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho
de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
–
Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi
que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está
no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo
numa bandeja e você se queixa.
–
Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente
ele beijou-lhe a mão.
–
Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
–
É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
–
Ele é tão rico assim?
–
Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu
falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro…
Ele
apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se
estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa,
repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as
rugazinhas sumiram.
–
Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando
a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
–
Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã…Mas, apesar de tudo, tenho às vezes
saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo
até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.
–
É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda
sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
–
Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de
uma laje despedaçada:
–
A minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Fez um muxoxo.-
Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele
atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas
é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor
intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando
uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o
musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes,
depois as folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome
sequer. Nem isso.
Ela
aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
–
Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me
divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim –
Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega Ricardo, quero ir embora.
–
Mais alguns passos…
–
Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás.
– Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
–
A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para
frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se
vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas
vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos
os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já
estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por
aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
–
Sua prima também?
–
Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas
tinha uns olhos…Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus.
Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas…Penso agora que toda a
beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
–
Vocês se amaram?
–
Ela me amou. Foi a única criatura que…- Fez um gesto. – Enfim não tem
importância.
Raquel
tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
–
Eu gostei de você, Ricardo.
–
E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um
pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
–
Esfriou, não? Vamos embora.
–
Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam
diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem,
que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu
quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes
enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um
altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo.
Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre
os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas,
pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do
Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando
acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela
entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da
capelinha.
–
Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele
tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
–
Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas,
sinais da minha dedicação, certo?
–
Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse
abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a
morte se isolou total. Absoluta.
Ela
adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na
semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro
paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
–
E lá embaixo?
–
Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó-
murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta
no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la.
– A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se
no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
–
Todas estas gavetas estão cheias?
–
Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta
está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com
as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela
cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
–
Vamos, Ricardo, vamos.
–
Você está com medo?
–
Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele
não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um
fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
–
A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi
umas duas semanas antes de morrer… Prendeu os cabelos com uma fita azul e
vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?…- Falava agora consigo mesmo,
doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos…Venha ver,
Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela
desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
–
Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando…
Acendendo
outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
–
Pegue, dá para ver muito bem…- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
–
Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…- Antes da chama se apagar,
aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria
Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida…- Deixou cair o
palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu
há mais de cem anos! Seu menti…
Um
baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava
deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás
da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
–
Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais
cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma,
ouviu?
Ele
esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então
deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
–
Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o
trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no
que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
–
Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta.
Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol
mais belo do mundo.
Ela
sacudia a portinhola.
–
Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a
portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as
grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. –
Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra…
Ele
já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram
as rugazinhas abertas em leque.
–
Boa noite, Raquel.
–
Chega, Ricardo! Você vai me pagar!… – gritou ela, estendendo os braços por
entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria,
vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as
grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar
até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o,
apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e
amoleceu o corpo. Foi escorregando.
–
Não, não…
Voltado
ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas
folhas escancaradas.
–
Boa noite, meu anjo.
Os
lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos
rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
–
Não…
Guardando
a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som
dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o
grito medonho, inumano:
Durante
algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de
um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos,
abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão
do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum
ouvido humano escutaria agora qualquer chamado.
Acendeu
um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
terça-feira, 19 de junho de 2018
Fungghi secchi ao molho
Sabor ★★★★☆
Aparência ★★★★★
Textura ★★★★★
Perfume ★★★★★
Ingredientes
50g de fungghi secchi
50g de fungghi secchi chileno (ele que dá essa cor toda)
1/4 xícara de molho de tomate pronto
Água da hidratação dos cogumelos
Fumaça líquida a gosto
Tempero para refogar o cogumelo a gosto
Azeite para refogar o cogumelo
1/4 de xícara de farinha para engrossar
Peparo
Hidrate os cogumelos (coloquei todos juntos, cobri com água quente e deixei).
Depois de esfriar, com as mãos, tire o excesso de água apertando-os. Não jogue nada da água fora, ela será o molho.
Em uma panela coloque os temperos e o azeite que utilizará para refogar os cogumelos, eu usei tempero pronto (alho, cebola e sal) por isso na foto não aparece nada.
Em seguida acrescente a água da hidratação, cheia de nutrientes, e deixe ferver em fogo baixo por um tempo, quando o cheiro estiver perfumando a casa, acrescente o molho de tomate e deixe reduzir o volume mais um pouco.
Eu coloquei muito azeite, por isso tanto brilho... falha nossa.
Quando estiver com o volume que deseja, em uma peneira coloque a farinha e vá polvilhando sobre a panela para não empelotar, polvilha um pouco e mexe, e assim vai até acabar a farinha.
Logo começará a engrossar, pelo processo do trigo, usei farinha comum. Quando desligar o fogo, acrescente a fumaça líquida e acerte o sal.
sexta-feira, 15 de junho de 2018
Será o Bob Esponja o novo Sansão?
Esta
resenha compara a analisa “A revolução dos bichos” de George Orwell e o desenho animado “Bob
Esponja”, relacionando as personagens Sanção e Bob Esponja no viés de
hereditariedade sobre o trabalho e a perspectiva de cada um, visto que um
precede ao outro como representantes de suas gerações.
O
livro é um romance distópico que mostra uma fazenda na qual os porcos lideram
uma revolução dos animais, como força de trabalho, contra o homem, donos da
fazenda, como proprietários dos meios de produção. O cavalo Sansão se destaca
pela as força física, honra, dedicação e submissão ao novo sistema, enquanto
sonha com a sua aposentadoria justa e longínqua.
O desenho animado apresenta uma sociedade na
qual as conquistas da geração de Sansão, no campo dos direitos dos
trabalhadores avançou a ponto de continuar a mesma coisa – talvez desde aquela
época, não é mesmo? -, porém, o meio de manipulação não é mãos o desejo pela aposentadoria
vindoura, e sim o amor pela logomarca, o patriotismo exacerbado pelo
estabelecimento empregatício e alienação tamanha que a folga passa a ser um
problema para o trabalhador e o empregador
- dono do meio de produção – que necessita manter as aparências, às
vezes busca resolver e se depara diversas vezes om a personagem do Bob Esponja
burlando o sistema de direitos do trabalhador para trabalhar no dia de folga.
Não
lembro se foi só um episódio, ou se foi deslumbramento na época em que vi o
desenho pela primeira vez, e ainda chorava a morte de Sansão pela leitura
recente do livro, todavia, minha opinião não mudou, apenas vejo melhor o quanto
a mídia, a meritocracia, o capitalismo e o exagero de políticas liberalistas
acabam oportunizando sempre e sempre uma vida dedicada ao trabalho e ao
capital.
(Reescrita
da resenha do meu blogue anterior, texto de 2014 anda disponível lá)
Artista Laura Lucy |
terça-feira, 12 de junho de 2018
sexta-feira, 8 de junho de 2018
quinta-feira, 7 de junho de 2018
“A Hospedeira” de Stephanie Meyer, para pensar sobre nós mesmos
Meyer é estadunidense e formada em literatura inglesa e A Hospedeira é sua primeira obra que foge da temática presente em Crepúsculo. O livro é uma ficção científica que tem um belo romance em seu enredo e com inúmeras dificuldades, o que nos faz refletir sobre muitos aspectos humanos e muitas de nossas atitudes.
Por mais que seja um livro de leitura fácil, e uma história que não é tão surpreendente, pois muitos já falaram sobre a vinda de outros seres para a terra, de destruição da humanidade, entre outros. Ela inova nos transformando em hospedeiros de "almas" alienígenas, que vem se "hospedando" em outros seres em vários outros planetas, como de golfinhos, aranhas e flores.
Para eles a experiência é única, pois nunca sentiram as emoções que os humanos sentem e eles têm um agravante que não temos, a bondade. Eles não precisam pagar por suas compras, não ultrapassam o limite de velocidade, não mentem e ajudam uns aos outros. É claro que temos o outro lado da moeda, nós, os humanos, perdemos nossos corpos e sumimos para sempre desse mundo sem fim. Alguns deles não saem dos seus corpos, convivem juntamente com esses parasitas alienígenas e são chamados de rebeldes, pois são tão fortes que não saem do seu próprio corpo com facilidade, é isso que acontece com Peg e Melanie. Peg se hospeda no corpo de Melanie que se recusa a sair e as duas passam a conviver no mesmo corpo, vivendo os mesmos sentimentos. Com isso elas passam a correr atrás dos humanos que Melanie tanto ama, que estão escondidos e não as acolhe da melhor maneira possível e aí se inicia a trama que dá inúmeras voltas fantásticas, inclusive algumas reflexões, sobre nós humanos, sobre o que é ser humano, porque é tão fantástico e porque é tão triste também.
Caímos mais uma vez na questão do amor, pois foi ele quem levou Melanie a não sair de seu corpo e, de certa forma, fazer com que Peg fosse buscar os entes de sua hospedeira. E por amor a eles, temos diversos sacrifícios, diversas discussões. O amor pelo outro, que quase não mais vemos por aí, o amor pela vida, a garra de querer estar consigo quando vemos as pessoas enxergarem só o próximo, apontar somente o que o próximo tem de melhor ou pior e sem olharmos para nossas virtudes e tristezas. É um romance para que possamos olhar dentro de nós e vermos o quanto somos importantes. Não é auto ajuda, longe disso, mas as leituras precisam despertar alguma coisa dentro da gente e essa história não é melosa como crepúsculo, ela é mais densa e mais pesada também. Há quem não acredite em vida longe da terra, mas será que não seria muita pretensão pensar que estamos sós?
Por Gisele Souza
29/1/2013
29/1/2013
quarta-feira, 6 de junho de 2018
sexta-feira, 1 de junho de 2018
O corvo
Edgar Allan Poe
Tradução de Machado de Assis
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."
Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.
E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."
Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.
Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.
Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."
Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.
Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".
Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".
No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"
Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".
Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".
Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.
Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".
“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".
“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais."
“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".
E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
Tradução de Machado de Assis
Em certo dia, à hora, à hora
Ilustração de Édouard Manet (FONTE) |
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."
Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Ilustração de Gustave Doré (FONTE) |
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.
E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."
Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.
Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.
Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Ilustração de James Willian Carlling (FONTE) |
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."
Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.
Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".
Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".
No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"
Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".
Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".
Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.
Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".
“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".
“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais."
“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".
E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
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